Friday, June 13, 2008

MISTÉRIO NO SOLAR

Deu quem é o vulto? Posso ver apenas sombras e pecados.
Por Georgiana de Sá

Essa é a história de uma operação que correu em segredo há muito tempo atrás aqui no Brasil. Foi quando eu servia como costureira no solar de dona Domitília de Castro e Canto Melo, a marquesa de Santos, amante preferida do imperador Dom Pedro I. Nessa época, descobri que além de lidar bem com agulhas e linhas eu era ótima investigadora. Também, com tantos ladrões e nem uma prisão! Mas o fato é que descobri o tal larápio. Primeiro, deixa eu me apresentar. Fui batizada como Etelvina. Desenvolvi, na época áurea da alta-costura francesa, o dom de saber o modelo adequado para cada pessoa, razão das famílias fidalgas requisitarem meus serviços.

Quando ocorreu o primeiro furto foi acionada a guarda real. A seção de inteligência para investigação sigilosa fez levantamentos superficiais no solar e logo desistiu, considerando o fato ocorrido sem nenhuma importância especial. No entanto, a polícia da corte não previa que os pequenos furtos fossem continuar. Um dia o sumiço de uma anágua sem elástico da marquesa, no outro as plumas francesas que haviam sido esquecidas sob a cama. Depois, um corte de veludo retalhado de um metro, avaliado em oito contos de réis. E, para completar, na semana seguinte, desaparecem no aposento da marquesa três sobretudos de Dom Pedro, capas importadas da Inglaterra.

O furto dos sobretudos, como uma bomba, foi motivo mais que suficiente para alarmar até mesmo o imperador. Os sete funcionários da coroa, a serviço da amante real, tiveram que desembolsar o valor do prejuízo, inclusive eu fui lesada.

Enquanto a infame e misteriosa presença continuava em seu esporte de surrupiar, nas horas vagas eu visitava lojas de moda e cabeleireiros. Procurava manter-me atualizada e gostava de observar com discrição a influência da moda francesa entre as damas e nobres cavalheiros.

Os dias se passaram e, sem comentar com ninguém, cheguei à seguinte dedução:

1. Os guardas da coroa não tinham acesso aos aposentos da marquesa, e, além disso, nenhum deles roubaria uma anágua sem elástico.
2. O larápio dos sobretudos devia ser da confiança de dona Domitilia.
3. Alguém capaz de vasculhar gavetas e roubar anáguas da amásia do imperador era, sem dúvida, muito ousado, com a exata mentalidade para roubar plumas francesas, um metro de veludo ou três sobretudos ingleses.
4. O larápio das plumas era o mesmo das outras coisas e realizava seus furtos nos aposentos do solar, abusando da boa fé da marquesa (podiam ser os serviçais da limpeza).

Resolvi fazer um teste. Entravam na sala de costura, além de mim, apenas os serviçais da limpeza para retirarem o pó. Deixei como que esquecido na mesa de costura um par de meias de seda. Passaram-se três dias e as meias continuavam na mesa. Quem fazia sumir as peças no quarto principal não era o pessoal da limpeza.

Outra bela surpresa! Do guarda-roupa da marquesa sumiram doze robes de chambre. Os funcionários do solar estavam atônitos. Foi chamada novamente a guarda imperial e todos os serviçais interrogados, sem resultados.

Diante de tudo o que ocorrera, em certa tarde, ao final das costuras, fui chamada à cozinha e revistada por uma senhora que trabalhava na guarda. Que acinte, provocação, picuinha, insulto, desfeita, afronta. Não conseguia achar a palavra exata para tanta desconsideração. Isto se tornara uma humilhação intolerável. Nesta tarde eu tive uma idéia diabólica. Fui até o jardim e colhi um cogumelo psilocibino, fungo alucinógeno que mantinha escondido entre flores silvestres. Cortei-o em pequenos pedaços e retornei ao meu quarto. Peguei um delicioso croassaint de chocolate que recebi de uma amiga da cozinha, sobra do chá da tarde da marquesa, e com o canivete fiz um furo, introduzi o cogumelo alucinógeno, embrulhei e guardei em minha bolsa de costura.

No dia seguinte, a patroa havia saído para um banquete. Antes de recolher as tesouras, num momento em que ninguém olhava, deixei o croassaint junto ao criado-mudo no dormitório da marquesa por cima de um vestido de seda vermelha, tipo de bordado sobre fios contados de ouro e prata. Usei um dos pratos do lindo e raro conjunto de peças em fina porcelana, outro presente do imperador à sua favorita.

Esta noite eu não conseguia dormir. Virava de um lado para o outro na cama. Não conseguia pensar em outra coisa senão na cena emergente. No comilão guloso que dificilmente resistiria. O engraçado é que eu parecia sentir a mesma loucura, o querer incontrolável, o persistente desejo que o gatuno teria diante da chance de se apossar do que é do outro. Vaidade, inveja, gula...pecados nunca andam sozinhos...Cansada de tanto pensar apaguei a luz. Não sei quanto tempo se passou, mas não dormi.

Quando retornei ao solar, logo à porta, disse-me o filho da cozinheira:
-Senhorita Etelvina, já sabe que acharam o larápio?
Com o susto, deixei cair uma das tesouras no chão.
- Sim?
- Era a governanta-chefe.
- A governanta-chefe?
- Os serviçais ouviram gargalhadas maníacas e encontraram-na rodopiando pelo sombrio corredor. Chorava e ria ao mesmo tempo, como louca. Gritava: ‘Amo o imperador. Amo o imperador’!”... O vestido bordado a ouro estava enroscado em baixo dos babados de seu uniforme.

O mistério foi enfim revelado. Na verdade, a governanta quando estava disposta a furtar da marquesa, entrava no aposento com o uniforme sem as anáguas e escondia as peças por baixo da saia. Naquela noite, além de tentar surrupiar o vestido, escondeu dentro de seu corpete um diadema incrustado de brilhante, que Dom Pedro havia oferecido de presente à marquesa. Comprovou-se que debaixo da saia rodada cabia folgadamente plumas, anáguas e até sobretudos enrolados.
Com a descoberta, a guarda do imperador não levou adiante as investigações para descobrir quem deixara o croassaint alucinógeno no quarto da marquesa.

Nesse dia, todos os serviçais sentiram-se aliviados, inclusive eu. Mas, uma nova onda de intrigantes furtos recomeçou no solar. Isso, já é outra história...

(Inspirado no Conto “O Mistério dos Três Sobretudos”, de Roberto Arlt) Luxúria, gula, inveja, ira, vaidade, avareza, preguiça. Os sete pecados de Pandora estão para as tragédias humanas como a lua cheia está para o lobo uivante. É só mexer na misteriosa caixa e tudo vem a lume...

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